“Os doentes neuromusculares foram completamente esquecidos”

Os doentes neuromusculares foram completamente esquecidos, APN

Por Cláudia Sampaio | Fotografia Página de Facebook da APN

Os doentes neuromusculares foram completamente esquecidos, Joaquim Brites, presidente da APNJoaquim Brites é eletrotécnico e gestor de profissão. Em 2012, assumiu a presidência da Associação Portuguesa de Neuromusculares (APN) pois, apesar do seu percurso profissional em nada coincidir com a área da saúde ou das doenças raras, a vida levou-o até este mundo. Corria o ano de 1996, quando Joaquim e a sua esposa receberam o diagnóstico que nenhum pai está preparado para ouvir: o seu filho José tinha distrofia muscular de Duchenne. Cedo se aperceberam do impacto que a doença iria ter no seio familiar. Conscientes das implicações, não baixaram os braços. A união e a dedicação da família venceram. Hoje, José é um jovem ativo profissionalmente, que concluiu o seu Mestrado em Engenharia de Computação Móvel, com uma excelente nota. Em tempos pandémicos como os que vivemos hoje, o presidente da APN fala-nos de inclusão. Critica o Governo português, por ter excluído estes doentes, lembra que há um longo caminho a percorrer, em Portugal e no mundo, para que sejam cidadãos de pleno direito e totalmente integrados na sociedade.

 

O que são doenças neuromusculares?
Joaquim Brites (JB) – São o maior grupo de doenças raras do mundo e caraterizam-se quase todas pela perda gradual de força dos músculos.

Classificam-se em três grandes grupos: as neuropatias (doenças dos nervos), as miopatias (doenças dos músculos) e as doenças do foro do neurónio motor, que são todas aquelas que, nos últimos anos, têm vindo a público, tais como a esclerose lateral amiotrófica (ELA), a atrofia muscular espinhal (AME) e muitas outras.

Todas são doenças genéticas, incapacitantes e progressivas. É muito difícil conviver com elas. Afetam muito a parte familiar e, também, a ligação social dos doentes.

A parte cognitiva da grande maioria dos doentes não é afetada e, estes, mantêm-se inteligentes. No entanto, em algumas doenças, uma pequena franja dessa população apresenta um ligeiro comprometimento socio-cognitivo, sem grande expressão.

Falou nas famílias. Qual é o seu papel neste tipo de doenças?
JB – As famílias são a peça mais importante durante todo o processo. O seu papel deve ser preservado ao longo de toda a evolução da doença, nomeadamente na comunicação do diagnóstico. A família é altamente afetada. Imaginemos um casal de cerca de vinte anos que constrói uma vida de sonho, que ambiciona construir uma vivenda e uma carreira profissional de crescimento rápido. E, de repente, com o diagnóstico de uma doença neuromuscular, tudo isso é posto em causa.

Nesse sentido, considera que os sonhos das famílias são adiados?
JB – Para ser prático, não diria adiados. Os sonhos são interrompidos, dependendo da evolução e do tipo de doença. São crianças que vão necessitar de um grande acompanhamento de um dos elementos do casal. Para isso, o pai ou a mãe têm de deixar de trabalhar. Dependendo da gravidade, estas doenças são sempre a principal causa de interrupção dos sonhos da família.

Quando fez sentido para si assumir a presidência na APN?
JB – Sou pai de um rapaz com distrofia muscular de Duchenne. Recebemos o diagnóstico quando o José ainda não tinha completado os seis anos de idade, em 1996. Na altura, era mais o que se desconhecia sobre a doença do que aquilo que se conhecia. Foi muito importante ir a Londres em busca de uma segunda opinião. Graças a essas viagens e à experiência que se obteve lá, conseguimos que, em Portugal, existisse um maior acesso à informação. Por volta desse ano, tentei também perceber se havia mais doentes e onde podia encontrar mais famílias
a passar pela mesma situação, para perceber quais os passos seguintes.

Foi nesse percurso que encontrei a Associação Portuguesa de Neuromusculares, que era uma instituição ainda com instalações rudimentares, na Rua das Cruzes, no Porto. Fui a uma primeira Assembleia Geral e comecei a interiorizar tudo aquilo. O primeiro embate não foi fácil, ver outras famílias com o mesmo problema, já com filhos um pouco mais velhos que o meu, em cadeira de rodas. Enfim! Foi uma fase difícil.

Lembro-me que, na segunda Assembleia Geral, se discutia quem é que queria pertencer às listas para os órgãos sociais da associação, porque estavam em período eleitoral. Em 1997, convidaram-me para ser secretário da Direção, cargo que aceitei. E até hoje faço parte da Direção.

Exerci dois mandatos enquanto secretário e três como vice-presidente. Em 2012, assumi a presidência. O orçamento interno, nessa altura, era muito limitado e rondava os 30 mil euros, e nem sabíamos bem o que fazer com essa quantia. Tínhamos um projeto a decorrer na Direção-Geral da Saúde (DGS), que foi o primeiro projeto de Assistência Pessoal que se realizou na prática em Portugal, e fomos crescendo.
Atualmente, temos três centros de atendimento, cinco viaturas na rua, e um orçamento de quase 900 mil euros. Portanto, os meus últimos 20 anos foram muito dedicados à APN, às doenças neuromusculares e ao associativismo na saúde. É tempo de pensar dedicar-me a outros projetos.

Quais são os objetivos da Associação, a missão e as formas de atuação?
JB – A associação tem como princípio estatutário o de representar e proteger as famílias. Não angariamos fundos para ajudar as famílias diretamente, nem financiamos os seus projetos. Garantimos, no entanto, o acompanhamento necessário dos processos que levem à sua concretização.

A estratégia essencial é a de apoiar as famílias, tanto no âmbito social como psicológico, que é um fator determinante nestes casos. No nosso quadro, contamos com doze técnicos, desde psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e fisioterapeutas. Todo o apoio que prestamos é mais no sentido prático. Queremos que, sempre que possível, as pessoas venham até nós. Primeiro, porque sentem necessidade de algum apoio e de saber quem é que existe no mundo com o mesmo problema. Quanto mais pessoas conhecemos com o mesmo problema, melhor nos apercebemos se estamos a enveredar pelo caminho certo.

A estratégia essencial é a de apoiar as famílias, tanto no âmbito social como psicológico, que é um fator determinante nestes casos.

Prestamos um auxílio fundamental na área social, para conseguir-mos ajudar as famílias a beneficiarem dos produtos de apoio que o Estado concede, através da legislação em vigor. As pessoas que têm direito a uma cadeira de rodas devem ter uma cadeira de rodas.

Não angariamos dinheiro nem tampinhas para comprar cadeiras de rodas, nem para financiar diretamente qualquer tipo de ajuda técnica. No entanto, suportamos e credibilizamos campanhas que se destinem a atribuir alguns produtos, não previstos no financiamento pelo Estado.

A nossa angariação de fundos destina-se a cobrir as despesas com as nossas estruturas e com os nossos técnicos, que têm de ser remunerados para que, eles próprios, ajudem as famílias a terem acesso aos seus direitos. O Estado tem a obrigação de cumprir aquilo que legisla. Se há uma lei de atribuição de produtos de apoio, o que dizemos às famílias é: “Venham até nós que ajudamo-vos a montar um processo para entregarem no Centro de Emprego, na Segurança Social, ou noutras repartições públicas.” A nível psicológico, damos apoio às famílias e fazemos a avaliação psicopedagógica de alguns doentes, etc.

O projeto de Assistência Pessoal consiste em centros de apoio à vida independente, que ajudam pessoas com deficiência a serem um pouco menos dependentes de terceiros. Para isso, temos formado assistentes pessoais – profissionais que vão a casa das pessoas com deficiência ou com qualquer outro tipo de dificuldade – para ajudar nas atividades diárias, nomeadamente a lavarem-se, a vestirem-se e, sobretudo, a manterem-se no sítio onde mais gostam de estar – nas suas casas.

Institucionalizar uma pessoa inteligente é uma das piores coisas que se lhe pode fazer. O nosso objetivo é que os doentes estejam em suas casas, mas acompanhados com alguém que os ajude a passear, a estudar e a estimularem-se cognitivamente. Estes doentes podem ter uma vida profissional ativa, tal como todos os outros. O meu filho é engenheiro informático, tem um Mestrado de Computação Móvel e terminou a tese com uma excelente classificação. Neste momento, está a trabalhar numa empresa que o acolheu e incluiu nos seus quadros, encontrando-se em teletrabalho por causa da pandemia. Como pode ver, é uma pessoa perfeitamente válida.

Considera que há ainda um longo caminho a percorrer?
JB – Há muito a fazer, sobretudo no aspeto da comunicação. As famílias e a comunidade médica carecem, ainda, de muita informação.

Apesar de já terem decorrido imensos anos sobre a descoberta do genoma e o mapeamento de algumas doenças em termos genéticos, o médico que tradicionalmente trata doenças comuns não se preocupa em informar-se e em atualizar-se sobre estas matérias mais específicas, porque são doenças raras e, portanto, não aparecem no consultório todos os dias.

Não obstante, há pontos positivos de melhoria: Já existem consultas multidisciplinares devidamente organizadas em alguns Centros Hospitalares do país, como são exemplo os do Porto e de Coimbra. Há também uma série de hospitais que estão a organizar-se e a desenvolver um trabalho muito grande de informação e de formação dos seus quadros. Mas tudo isto carece ainda de muito trabalho pela frente.

Como é que se prepara uma família para o diagnóstico?
JB – Ninguém está preparado para ouvir uma má notícia, e muito menos uma notícia grave. Coisas como: “O seu filho vai deixar de andar, ou nunca vai andar, ou nunca se vai sentar”, são notícias demasiado cruéis. Aqui, há dois lados: As famílias não estão preparadas para as ouvir; e os médicos, por vezes, também não estão preparados para transmitir essa ideia. Há muito trabalho a fazer a nível da comunicação. Transmitir às famílias todos os procedimentos e o que deve ser feito, deve fazer-se por fases.

Sentiu que, de alguma forma, os doentes neuromusculares foram afetados pela pandemia?
JB – Apesar das minhas chamadas de atenção, quer às Secretarias de Estado, quer à DGS, foram completamente esquecidos.
Vou dar-lhe um exemplo: Ainda há pouco tempo, para as eleições presidenciais, o doente neuromuscular que se encontrava em isolamento preventivo não podia ir votar, por segurança, uma vez que é um doente de risco. Foi requerido o voto antecipado mas, como estes doentes não têm uma declaração da Saúde Pública que determine o seu isolamento, não se puderam inscrever-se no Portal. Por este motivo, muitos não puderam votar, caso contrário, corriam o risco de se infetar.

APN, Associação Portuguesa de Neuromusculares

No decorrer do ano de 2020, a Associação promoveu alguns programas, nomeadamente o Projeto “(IN)pregar+”. Qual é o objetivo deste projeto?
JB – Aquilo que tentamos fazer nestes projetos é incluir os doentes na vida ativa. O projeto “(IN)pregar+” resultou de um protocolo com uma empresa de Recursos Humanos, que tem corrido muito bem.

Estamos agora a caminhar para Lisboa, fizemos várias experiências no Porto e já conseguimos emprego para alguns doentes neuromusculares que estavam em casa desocupados, tendo capacidades cognitivas para mais. No entanto, lamentamos que existam muito poucas pessoas com deficiência a responder a estes anúncios de emprego e aos diversos pedidos que fizemos.

Por que motivo isto acontece?
JB – Também é uma questão para a qual estamos à procura de respostas. Creio que há vários aspetos envolvidos: Receio que as suas limitações os impeçam de serem produtivos, ou a falta de confiança neles próprios. Além disso, há também o receio de não serem capazes, de terem medo que as entidades patronais sejam violentas ou que os empreguem por pena. Há vários estigmas associados, e estamos a desenvolver alguns estudos nesse sentido.

Que conselhos deixa aos doentes e às suas famílias?
JB – Proporcionar o máximo de felicidade a estes doentes, dar-lhes tudo aquilo que eles puderem ter, e receber tudo aquilo que eles puderem dar, naturalmente. Todos os elementos da família devem estar presentes, porque é muito importante que os doentes se sintam acompanhados e protegidos pelo seu seio familiar.

Há uma outra mensagem que gostaria de deixar às famílias, no sentido de as “acordar” e também de as preparar. Não pensem que vai acontecer um milagre da Ciência e da Medicina e que o vosso filho se vai curar, porque isso pode não acontecer. Nesta fase, é quase impossível pensar-se numa cura total. Mas é necessário não perder a esperança. Por isso, não esperem que o vosso filho se sente numa cadeira de rodas para se adaptarem à realidade e aos hábitos familiares de que falei há pouco. Introduzam de imediato as alterações aconselháveis. Este é um processo evolutivo, que se desenvolve por etapas. E nós sabemos isso.

 

Associação Portuguesa de Neuromusculares dá cartas na inclusão

Associação Portuguesa de NeuromuscularesA Associação Portuguesa de Neuromusculares (APN) tem como objetivo melhorar a qualidade de vida dos doentes portadores de Doenças Neuromusculares (DNM) ou outras Doenças Raras, através dos seus projetos de inclusão. Trabalha fundamentalmente para integrar estes
doentes na vida profissional e torná-los tão independentes quanto possível “A Associação tem como princípio estatutário o de representar e proteger as famílias. Não angariamos fundos para ajudar as famílias diretamente, nem financiamos os seus projetos. Garantimos, no entanto, o acompanhamento necessário dos processos que levem à sua concretização. A estratégia essencial é a de apoiar as famílias, tanto no âmbito  social como psicológico, que é um fator determinante nestes casos.”, afirmou Joaquim Brites, presidente da APN.

Para este efeito, têm em curso diversos projetos na área da inclusão, nomeadamente o Projeto “‘(IN) Pregar+” e o Projeto “’In’Spira-Ação”. O primeiro, desenvolvido no ano de 2020, tem como objetivo desenvolver competências profissionais e de autonomia funcional em pessoas com deficiência, de modo a promover a sua inclusão profissional. Já no que diz respeito ao Projeto “‘IN’Spira- Ação”, foram realizadas , em formato online, seis sessões psicoeducativas de diferentes temáticas, de acordo com os interesses do seu público de intervenção.

A Associação disponibilizou ainda manuais e tutoriais online em vídeo, para facilitar o acompanhamento às famílias, que permitem, aos pais e aos cuidadores dos doentes, entender alguns aspetos importantes na evolução das DNM. No seu canal de YouTube podemos encontrar alguns tutoriais, que abordam quase todas as matérias consideradas fundamentais, para um conhecimento mais profundo das corretas abordagens às doenças neuromusculares.

 

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