Alcançar a sobriedade é, para muitas pessoas, uma batalha que se prolonga a vida inteira. Os Alcoólicos Anónimos Portugal (AA) estão na linha da frente dos comportamentos aditivos, permitindo que os seus membros possam participar em reuniões de partilha de experiências, onde é construído um sentido de comunidade na luta contra o alcoolismo. Mário Marques, presidente dos AA Portugal, explicou mais sobre o funcionamento destes grupos que se ramificam por todo o mundo, assim como os objetivos que caracterizam um trabalho capaz de mudar trajetórias, por trás da segurança do anonimato.
A história dos AA refere que já antes de abril de 1974 começaram a surgir membros portugueses desta comunidade informal, que hoje conta com mais de dois milhões de membros, em mais de 180 países. Quantos portugueses integram, atualmente, este grupo?
Mário Marques (MM) – Antes de mais, é importante referir que AA não é um grupo, no sentido etimológico do termo, tido como uma congregação homogénea de pessoas. Pensamos em AA como um conjunto de grupos, todos heterogéneos, porque são formados por pessoas diferentes, em que o que os une é a constatação de um problema com o álcool na sua vida e a vontade de parar de beber, alicerçada na filosofia do Programa dos 12 passos. Cada um desses grupos é autónomo, não existem controlo de presenças, registos de filiação ou quotas, pelo que é difícil definir um número exato de membros de AA em Portugal. Contudo, sabemos que existem mais de 80 reuniões em Portugal, pelo que podemos pensar que são largas as centenas de pessoas que diariamente participam numa reunião de AA.
Quais são os principais objetivos delineados na intervenção dos AA?
MM – AA não é um projeto de tratamento com uma linha de intervenção delineada. Contudo, é uma excelente ferramenta de recuperação para a pessoa que sofre com uma doença aditiva ao álcool. Portanto, podemos dizer que o principal objetivo de AA é ajudar o doente alcoólico, numa primeira fase, a parar de beber, numa segunda etapa a manter a sua abstinência e, num terceiro momento, passar da abstinência à sobriedade, de forma a ser uma pessoa com plenos direitos, obrigações e responsabilidades na sociedade.
É presidente da comunidade AA Portugal há duas décadas. Como tem sido o desafio de lidar esta equipa?
MM – Quer o presidente quer o vice-presidente de AA são membros não alcoólicos, de preferência com uma ligação às questões relacionadas com o alcoolismo. De onde a sua maioria tenham sido profissionais de saúde ligados ao tratamento do alcoolismo. São mandatos de três anos, eventualmente renováveis por mais duas vezes. Quer isto dizer que nenhum presidente de AA o foi durante 20 anos. No máximo poderá exercer esse cargo por nove anos. No meu caso em concreto, exerço esta função desde 2016. Felizmente, esta é uma associação diferente. O presidente não lidera, não chefia, não está no topo de uma pirâmide hierárquica. Pelo contrário. Pegando na analogia da pirâmide, podemos pensar no presidente exatamente no polo oposto, na base da pirâmide. No topo estão os grupos e os seus membros que são totalmente autónomos e soberanos na forma como entendem o seu processo de recuperação. A função do presidente é poder ser a cara e a voz do esforço diário da luta destas pessoas, afirmando que AA existe e pode ser mais um recurso para ajudar “o Alcoólico que ainda sofre”.
O trabalho dos AA é reconhecido por dinamizar reuniões, tanto online como presencialmente. Que atividades são desenvolvidas nestes encontros?
MM – Uma reunião de AA é uma conversa que dura cerca de uma hora e meia e, no entanto, é muito mais que uma conversa. É um encontro entre pessoas que comungam do mesmo propósito, como disse anteriormente, manter a sua abstinência e transformá-la em sobriedade. Quando um grupo de pessoas que perseguem o mesmo objetivo se encontram, esse encontro é uma forma de vínculo. Parece-nos ser esta uma das mais-valias fundamentais que AA traz ao processo de recuperação, a vinculação com o outro que também está a passar pelo mesmo que eu. Se é verdade que, naquela hora e meia, o vínculo se estabelece pela partilha, uma reunião de AA é muito mais que aquele período. São os momentos de encontro antes da reunião e depois da reunião, os almoços e jantares de convívio, os eventos de comemoração que são realizados e que dão um caracter festivo e de prazer à vida. A recuperação não tem de ser um martírio, o verdadeiro crescimento dá-se pelo prazer e pela alegria da presença do outro.
Porque é que o anonimato é uma questão tão importante de resguardar nos casos de dependência no consumo de bebidas alcoólicas?
MM – O anonimato é fundamental para a coesão e crescimento de AA enquanto comunidade. Em primeiro lugar, porque protege a confidencialidade de quem frequenta uma reunião de AA. A esmagadora maioria das pessoas tem uma vida privada organizada, com família, amigos e trabalho e ser dependente de álcool ainda não é visto em largos setores da nossa sociedade como uma doença, mas como um defeito de carácter, um anátema na vida daquela pessoa. Portanto, a confidencialidade protege aquele que deseja frequentar uma reunião de AA de eventuais abusos e más interpretações que prejudiquem a sua vida. Em segundo lugar, protege a comunidade de AA de eventuais abusos de poder de algum dos seus membros. Ser membro de AA não acarreta qualquer tipo de privilégio ou benesse social, só para a sua recuperação. Prescindir do anonimato poderia significar vincular todo o programa de AA ao que cada membro julga que é o correto na recuperação ou à interpretação do programa que cada um faça dele. O risco seria a criação de uma clivagem que em nada contribuiria para a defesa de um programa de recuperação que não precisa de apóstolos nem de seguidores fanáticos. Apenas de pessoas humildes e de mente aberta.
Quais são os aspetos que considera mais difíceis de enfrentar na luta contra o alcoolismo?
MM – Conseguir passar a mensagem que o alcoolismo é uma doença crónica, que não tem cura mas tem tratamento e possibilidades reais de recuperação; que é uma doença primária, ou seja, que existe por si e não, como muita gente pensa, secundária a outras patologias, nomeadamente mentais; que é uma doença progressiva, que se foi instaurando ao longo do tempo sem que o próprio, ou as pessoas mais chegadas, se tenha apercebido; e que, finalmente, é uma doença que pode matar. O alcoolismo é responsável por mais de 200 doenças físicas e mentais, algumas delas, potencialmente fatais. É importante esclarecer que o doente alcoólico não tem culpa por ter esta doença. Existem vários fatores que se influenciam mutuamente e nenhum deles é a vontade do próprio. Não conhecemos nenhum doente alcoólico que desejasse ter esta doença. Portanto, a tónica não deve ser colocada numa ordem moral, “bebes porque queres”, mas antes na responsabilidade de fazer o que estiver ao seu alcance para tratar a doença que tem.
Os portugueses são a população da União Europeia onde é mais comum beber álcool diariamente, sendo considerados um dos povos que mais ingerem esta substância. Como visualiza a evolução do consumo de álcool com o passar dos anos, do ponto de vista nacional?
MM – Alcoólicos Anónimos, devido ao seu carácter universal e de forma a proteger a unidade do seu programa, não se imiscui em questões de âmbito político e é equidistante em relação a todas as problemáticas relacionadas com as políticas de combate ao alcoolismo. Contudo, há algumas constatações que são possíveis de fazer. Portugal é, consistentemente, um dos países do mundo onde se ingere uma maior quantidade de álcool per capita. O consumo de álcool, sobretudo vinho, está enraizado culturalmente na nossa sociedade. Somos um país produtor, o vinho é parte integrante da dieta mediterrânica em que, entre outros aspetos, o estar à mesa em convívio é uma das suas facetas e onde beber está ancorado ancestralmente. Somos o país onde até há poucas décadas, beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses. Muito tem sido feito, mais ainda estará por fazer. AA, de forma muito humilde, continuará a contribuir com a sua parte para levar a sua mensagem de recuperação e esperança a todos aqueles que dela precisem.
É comum os doentes alcoólicos procurarem ajuda antes ou depois de desenvolverem sintomas físicos ou até quadros clínicos graves, como a doença hepática crónica? Ou o impacto mental costuma ser o primeiro fator que impulsiona a procura pelo vosso acompanhamento?
MM – Antes de mais, é importante referir, como fizemos anteriormente, que o Programa de Alcoólicos Anónimos não é uma programa de tratamento. Nesse sentido, AA não faz acompanhamentos, nem terapêutico, nem de qualquer espécie. Pelo contrário, é um programa de liberdade em que “apenas” é sugerido o exemplo de recuperação trilhada por outras pessoas. Depois, é a liberdade de escolha de cada um poder seguir o seu caminho e viver a sua recuperação de forma individual. Posto isto; cada pessoa pede ajuda quando sente que chegou ao seu limiar de sofrimento. É difícil partir este sofrimento em físico ou mental. Os problemas vão se acumulando ao longo dos anos, é o caracter progressivo da doença. As doenças físicas vão de par com os problemas emocionais, estes casam com as dificuldades sociais, com as ruturas familiares, com os problemas judiciais, no trabalho… Uma coisa podemos ter como certa, como falamos de uma doença progressiva, o doente alcoólico só tem realmente consciência do seu impacto quando estas várias questões se agudizam de tal maneira que torna praticamente impossível manter o seu estilo de vida. É nessa altura que pede ajuda, quando se dá a crise. A crise dá-se quando deixamos de poder viver como vivíamos, há um antes e um depois. É quando se dá esta crise que a pessoa pede ajuda e constata, “vê” o real estado da sua vida, nos seus vários aspetos, físicos, psíquicos, sociais, familiares, judicias, laborais, espirituais, entre outros.
Que comportamentos denunciam um doente alcoólico e que constituem um sinal de alerta para procurar ajuda especializada?
MM – Damos dez exemplos:
- Quando beber bebidas alcoólicas passa a ser uma questão central na sua vida;
- Quando não consegue prescindir da bebida diariamente ou fica irritado ou deprimido quando isso não acontece;
- Quando são descuradas importantes responsabilidades na sua vida, por exemplo, esquecer-se de ir buscar os filhos à escola ou faltar ao trabalho;
- Quando começa a não ter memória do que fez no dia anterior;
- Quando, apesar dos problemas que começam a surgir nas várias áreas da sua vida, mantém o seu consumo de álcool;
- Quando as pessoas que com ela privam mais intimamente começam a chamar a atenção para o seu consumo de álcool e para as suas alterações do comportamento;
- Quando precisa de começar a beber de manhã para acalmar os sintomas de abstinência alcoólica e conseguir manter um nível mínimo de funcionamento;
- Quando começa a mentir sobre o seu consumo e onde esteve;
- Quando começa a esconder garrafas;
- Quando, apesar de alertado, mantém um discurso de “Eu não tenho problema nenhum, paro de beber quando eu quiser”.
De que forma é estabelecida a ponte entre grupos como os AA e os profissionais de saúde? Existe alguma ligação ou protocolo que possa destacar?
Como referimos anteriormente, AA é totalmente equidistante em relação às questões políticas respeitantes ao combate ao alcoolismo e o mesmo se aplica em relação aos profissionais de saúde ou aos centros de tratamento. Não existe qualquer tipo de protocolo, porque fazê-lo poria em causa a unidade e liberdade do seu programa, pelo risco de o vincular a uma forma específica de tratamento em detrimento de outras. O que não quer dizer que não exista um trabalho de colaboração com algumas Instituições ligadas ao tratamento do alcoolismo que decidem incorporar no seu programa de tratamento a filosofia dos 12 passos de AA. A colaboração é restrita à realização de reuniões de AA nesse centro, ou, recebendo doentes internados em Reuniões de AA que constam do seu Diretório. Mas repetimos, sempre numa lógica de autonomia e liberdade sem qualquer tipo de protocolo ou vinculação do programa de AA aquela estrutura de tratamento. É preciso deixar bem claro, devido a algumas dúvidas que por vezes existem que, AA não possui centros de tratamento, não recebe qualquer tipo de avença de profissionais de saúde e é totalmente autónomo financeiramente pelas contribuições dos seus membros.
Que metas tem traçadas para o futuro dos AA? E eventos?
A principal meta é continuar a passar a mensagem que AA existe, que é um recurso efetivo e eficaz na recuperação do doente alcoólico, que é grátis e não exige qualquer tipo de filiação ou obrigação. Se com esta entrevista conseguirmos chegar a mais uma pessoa que fique a conhecer que existe esta alternativa para o seu sofrimento, já cumprimos o nosso desígnio.
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